- Criado: 11 Maio 2020
Boletim Especial n. 37 - 11/05/2020
No boletim de hoje, José Eustáquio Alves (ENCE/IBGE) argumenta como a crise econômica e de desemprego na qual já se encontrava o Brasil tende a ser ainda mais agravada com a má gestão pública do governo federal frente à crise pandêmica que estamos vivendo, enquanto perdemos a oportunidade de aproveitar a “janela demográfica”, momento no qual se encontra o país. Já Henri Acselrad (UFRJ) nos fala sobre como os domínios sociais e ambientais passaram a ser tratados, com o avanço do neoliberalismo, como “externalidades” do mundo econômico e do mercado, levando a um processo de naturalização das consequências da industrialização, dentre elas a poluição e o descaso com o meio ambiente, problemas que revelam a urgência de serem levados a sério com a emergência da pandemia atual.
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O impacto mortal da covid-19 sobre a economia e a demografia brasileira
Por José Eustáquio Diniz Alves
A pandemia da covid-19 chegou ao Brasil com um certo atraso, mas com uma força desproporcional, em decorrência da incapacidade do poder público de equacionar uma resposta eficaz para conter a propagação do coronavírus.
De acordo com os dados da Universidade Johns Hopkins, no dia 01 de março o mundo atingiu 88,6 mil pessoas infectadas e 3 mil mortes, enquanto o Brasil tinha apenas 2 casos e a primeira morte ocorreu no dia 17/03. No dia 02 de abril, o mundo atingiu 1 milhão de casos e 53 mil mortes e o Brasil chegou a 7,9 mil casos (0,8% do total global) e 299 mortes (0,6% do total). No dia 15 de abril o mundo atingiu 2 milhões de casos e 135 mil mortes e o Brasil apresentou 28,3 mil casos (1,4% do total global) e 1,7 mil mortes (1,3% do total). Onze dias depois, no dia 26 de abril, o mundo chegou a 3 milhões de casos e 207 mil mortes, enquanto o Brasil chegou a 61,9 mil casos (2,1% do total global) e a 4,2 mil mortes (2% do total).
Portanto, a covid-19 cresce mais rápido no Brasil do que na média mundial e é um equívoco considerar que o país “performa” bem, como disse o ufanista médico Nelson Teich, atual responsável pelo Ministério da Saúde. As trocas de ministros e a instabilidade política só dificultam o controle da emergência pandêmica e o Brasil tem uma das maiores taxas de crescimento da doença no mundo. No ranking global, até o final de maio, o país de Bolsonaro só deve ficar atrás dos Estados Unidos de Trump.
A pandemia da covid-19 não poderia chegar ao Brasil em pior hora. A economia brasileira já estava enfraquecida, com “esclerose múltipla” e com várias “doenças” de risco, como baixa produtividade, baixa competitividade internacional, baixo dinamismo na produção de bens e serviços, baixa geração de emprego decente, baixa geração de renda, baixo investimento e com “pressão alta” no déficit fiscal, na dívida pública e nos indicadores de pobreza e desigualdade social.
Desde os anos 80, o Brasil está em uma trajetória submergente, crescendo menos do que a média mundial. Até o início do corrente ano, o desempenho econômico brasileiro na atual década (2011-20) estava empatado com o desempenho da década de 1980 e o país caminhava para a segunda década perdida. Mas o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), divulgado no último dia 14/04, estima que o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro vá cair 5,3% em 2020 (há possibilidade do tombo ser ainda maior). Se confirmada esta estimativa, o Brasil terá a sua maior recessão anual desde 1900 e terá a pior década econômica da sua história, como mostra o gráfico que ilustra este artigo.
Os impactos sociais serão dramáticos. Não há espaço, neste breve texto, para fazer um inventário da tragédia. Por isto, vamos focar apenas no mercado de trabalho, que é uma área que vem sofrendo bastante, desde 2014, e que é essencial para o futuro do país.
Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho, logo após as eleições presidenciais de 2014, o país tinha 41,3 milhões de empregos formais em novembro de 2014; este número caiu em 2015 e 2016 e recuperou em parte nos anos seguintes, mas chegou em apenas 39 milhões de postos, em dezembro de 2019. Portanto, há um déficit de 2,3 milhões de empregos formais, em relação ao que havia 5 anos atrás.
Os últimos dados da PNAD contínua, do IBGE, mostram um panorama nada animador do nível de emprego no Brasil. As informações referentes ao trimestre dezembro de 2019 a fevereiro de 2020 indicam que o país tem uma baixa inserção de seus habitantes na força de trabalho e há um grande desperdício do potencial produtivo nacional:
● População brasileira = 210,3 milhões de habitantes
● População ocupada (emprego formal + informal) = 93,7 milhões de pessoas
● População total não ocupada = 116,9 milhões de pessoas
Ou seja, a maior parte da população brasileira (55%) não estava ocupada no último trimestre da pesquisa e apenas 45% da população tinha uma ocupação. Entre os ocupados, havia uma taxa de informalidade de 40,6%, significando um contingente de 38 milhões de pessoas ocupadas, mas sem vínculos formais de emprego e sem proteção social. A população desocupada era de 12,3 milhões de pessoas e a população subutilizada de 26,8 milhões de pessoas. No Brasil, há muito mais “consumidores efetivos” do que “produtores efetivos”, ao contrário, por exemplo, da China e do Vietnã.
Não vamos fazer referência à teoria do valor de Marx, para não sermos acusados de propagar o “marxismo cultural”. Mas, basta citar Adam Smith, que na primeira frase do seu famoso livro, de 1776, diz: “O trabalho anual de cada nação constitui o fundo que originalmente lhe fornece todos os bens necessários e os confortos materiais que consome anualmente”. Ou seja, o trabalho é a fonte de toda a riqueza.
E aí chegamos na demografia. O Brasil, entre 2015 e 2020, vive o seu melhor momento demográfico. Dando ênfase: o melhor momento de todos os tempos, quer seja do passado ou do futuro. Estamos em um instante singular, que só acontece uma única vez na história de qualquer país. É quando a proporção de pessoas em idade ativa está em seu ponto máximo e a proporção de pessoas em idade não produtiva ou menos produtiva (crianças e idosos) está em seu ponto mínimo. Conhecido como “bônus demográfico” este acontecimento especial é aquele evento indispensável para a decolagem do desenvolvimento socioeconômico de qualquer país. Não existe nenhuma nação com altíssimo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que não tenha aproveitado as oportunidades de uma baixa razão de dependência demográfica.
Pois bem, aproveitar a janela de oportunidade é essencial para o progresso social e isto só se tornaria possível com investimentos na empregabilidade da força de trabalho, com saúde e alta qualificação educacional. Porém, não é o que tem ocorrido no Brasil nos últimos 6 anos de altas taxas de desemprego e subemprego, de aumento da pobreza e da desigualdade e de desmontagem de qualquer perspectiva de um sistema de proteção social mais amplo.
Com o surto epidêmico, de resultados incomensuráveis, o que estava ruim, piorou muito. Se a possibilidade de uma sinergia entre a economia e a demografia já enfrentava obstáculos estruturais quase intransponíveis, agora a conjuntura está agravada pelas disjunções geradas pelo isolamento social.
Assim, se nada for feito para reverter a crise econômica e social brasileira - que já persiste desde a penúltima eleição presidencial - a pandemia da covid-19 poderá ser a pá de cal no sonho de se aproveitar o “bônus demográfico”, implementar a bandeira do “Pleno emprego e trabalho decente” e efetivar a meta do fim da pobreza e o objetivo da plena equidade social.
As atuais adversidades poderão ser o enterro da ideia fundamental da emancipação via trabalho e do direito à autodeterminação produtiva. Enfim, pode ser o fim do sonho de uma nação livre, democrática, soberana e próspera.
José Eustáquio Diniz Alves é sociólogo, doutor em demografia, professor aposentado da ENCE/IBGE e colaborador dos sites Ecodebate e #Colabora
A microbiologia cega do capitalismo
Por Henri Acselrad
O otimismo tecnológico e a naturalização da poluição exprimiram a tolerância das elites com os efeitos indesejáveis da industrialização nos primórdios do capitalismo: a tecnologia resolveria os problemas criados pela tecnologia, diziam então alguns peritos, buscando assegurar a continuidade dos negócios1. Os males ambientais, enquanto isto, se abatiam sobre os pobres no entorno das fábricas. Naturalização da epidemia e otimismo tecnológico na gestão da crise sanitária são, hoje, os motes do neoliberalismo autoritário e socialdarwinista, exprimindo o que o antropólogo Eric Fassin chamou de “xenofobia a qualquer custo”2, para o caso da Europa. Em sua versão brasileira, um “racismo a qualquer custo”, que propõe a prioridade dos negócios ante a saúde dos mais desprotegidos, em maior proporção, negros e pobres.
Em condições de descontrole sobre os riscos gerados pelo que se faz no mundo das mercadorias – incluindo pelo manejo capitalista de processos microbiológicos – as elites podem, eventualmente, se dar conta de que dependem de processos que não controlam. Pode ocorrer que a segregação socioespacial da população deixe de funcionar como garantia da distribuição seletiva - discriminatória - dos males. A amplitude socioespacial dos agravos pode, inclusive, como na presente crise pandêmica, abalar temporariamente dogmas de ideologias dominantes, assim como seus modos de orientar a gestão “do social”.
Ante os efeitos ampliados da crise sanitária, políticos privatistas e economistas liberais apoiam circunstancialmente o recurso à máquina pública para fins que ultrapassam a garantia da propriedade privada e da mobilidade dos capitais. Os domínios – sociais e ambientais - tidos até aqui como “não-econômicos” por economistas ortodoxos, passam a ser vistos como antieconômicos, requerendo ações estatais de estabilização, ou, como nos termos do Editorial do Financial Times de 03/04/2020, que entendam “serviços públicos como investimentos, e não como passivos”. Este parece ser um momento oportuno para discutirmos que lugar é este – do “social” e do “sanitário” - que, em plena hegemonia do discurso neoliberal, justifica, mesmo entre os apologistas do livre-mercado, o abandono temporário do dogma economicista.
Momentos críticos configurados pelos indicadores de mudança climática, de contaminação de oceanos, de elevação de doenças respiratórias por poluição atmosférica e crises sanitárias como a que atravessamos em 2020 têm dado lugar a uma crítica dos valores da acumulação ilimitada de bens e da arrogância do modelo desenvolvimentista. Mas quais seriam os mecanismos pelos quais estes valores, movidos pela lógica do lucro privado, baseados nas dinâmicas do consumismo e da obsolescência programada de mercadorias, terminam por se materializar numa constelação de males ambientais e sanitários?
Fonte: https://capitalandmain.com/pandemic-nation-podcast
Se observarmos o que há de peculiar nos processos de adição, subtração e mutação de matéria e energia promovidos para fins econômicos, veremos que seus efeitos atravessam “ambientes” situados fora da lógica do que se entende por “mercado”. No mundo das mercadorias, as mudanças materiais assim operadas não são refletidas nas decisões de compra, venda ou investimento. Tampouco são consideradas nos cálculos do que os agentes do mercado chamam de “eficiência”. Aquilo que Adam Smith batizou de mão invisível do mercado age de forma completamente cega com relação ao que ocorre fora dos movimentos da oferta, da demanda e do sistema de preços. Das origens do capitalismo até a sua atual versão liberalizada e acelerada, desprezou-se a ideia de uma “eficiência sistêmica” que pudesse suplementar ou corrigir o microcálculo da eficiência privada. Decisões econômicas que levam a injetar poluentes no “meio”, degradar ecossistemas e mutar processos biológicos são justificadas pela avaliação de simples indicadores de ganho monetário por agentes privados. Nestas decisões, desconsidera-se os males – ambientais e de saúde coletiva - que são projetados sobre tudo o que está situado “fora do mercado”, em particular sobre os espaços necessários à vida dos mais despossuídos.
Neste espaço socioecológico ignorado, teórica e praticamente, pela microeconomia da lucratividade, inclui-se a sociedade enquanto um corpo orgânico coletivo – a dimensão biológica das relações sociais que, em tempos de crise sanitária, emerge brutalmente, lembrando às pessoas que elas só existem co-existindo, inclusive por meio das pouco visíveis dinâmicas microbiológicas. A interconexão de nossas vidas biológicas, lembra-nos Kate Brown , é um nó na rede de trocas entre fungos, raízes, bactérias, liquens, insetos e plantas. O ar, as águas e os sistemas vivos são compartilhados através de relações que não são estritamente econômicas - menos ainda “mercantis” - mesmo que sofram, e muito, os impactos do que se faz na economia e no mercado.
Com o nascimento do capitalismo, juntamente com a nova escala de operação das práticas produtivas da grande indústria e da agricultura comercial e com a forma concentrada do exercício do poder de manejo dos espaços e recursos, criou-se uma divisão social desigual da capacidade das práticas espaciais se impactarem reciprocamente. As práticas dominantes da indústria e da agricultura em grande escala impuseram, de fato, seus usos privados aos espaços comuns do ar e dos cursos d´água, neles lançando os produtos não vendáveis da produção de mercadorias, impactando - e eventualmente comprometendo - o exercício de outras práticas espaciais não dominantes. Esta mesma privatização de fato - ou colonização, se preferirmos - se aplica aos sistemas vivos manipulados segundo a lógica de acumulação de lucros das monoculturas e do complexo agroquímico. Os vírus infecciosos disseminados nas últimas décadas são relacionados, por biólogos e filogeógrafos, ao uso intensivo de antivirais na criação industrial de animais, lócus de reprodução e mutação de vírus resistentes4. A revolução na criação de animais transformou a ecologia da gripe, levando especialistas a alertar, desde o surto de Hong Kong em 1977, para a possibilidade de um apocalipse viral5.
Dentre as ansiedades públicas que as elites procuraram aquietar no século XIX pela normalização dos males do industrialismo nascente, estava embutido um problema político: a prevalência de um uso privado - capitalista - dos espaços não-mercantis sobre demais usos. Uma questão política que foi então silenciada. Um ato de força que foi naturalizado, despolitizado. A questão do compartilhamento desigual dos espaços comuns da atmosfera, das águas e dos sistemas vivos passou a traduzir relações sociais não-mediadas pelo mercado, reduzidas, pelo discurso liberal, à condição - teoricamente vazia - de “externalidade”. É por isso que a retórica neoliberal nada tem a dizer acerca de pandemias, mudanças climáticas ou mortes por poluição atmosférica. Turbinada pelo tempo-espaço do capitalismo liberalizado, a pandemia, como afirma o escritor Erri de Luca6, sufoca as pessoas como um efeito de espelho da expansão econômica que sufoca o meio ambiente. Sobre este efeito de espelho, a poetisa Sophia de Mello Brainer advertiu que “quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem”7. Podemos complementar Sophia dizendo que, na busca de uma relação justa entre os humanos, é preciso estabelecer uma relação justa com a pedra, a árvore e o rio.
Henri Acselrad é professor do IPPUR/UFRJ e pesquisador do CNPq.
1 Alain Corbin, El perfume o el miasma: El olfato y lo imaginario social, siglos XVIII y XIX, Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1987.
2 Eric Fassin, Généalogie d´une alternative neolibérale, Libération, le 3 avril 2020. https://blogs.mediapart.fr/eric-fassin/blog/060420/economie-ou-societe-genealogie-xenophobe-d-une-alternative-neoliberale
3 Kate Brown,The Pandemic Is Not a Natural Disaster - The coronavirus isn’t just a public-health crisis. It’s an ecological one, in The New Yorker, 13/4/2020.
4 Rob Wallace, Alex Liebman, Luis Fernando Chaves e Rodrick Wallace, COVID-19 and Circuits of Capital, Monthly Review, 1/4/2020. https://monthlyreview.org/2020/04/01/covid-19-and-circuits-of-capital/
5 Mike Davis, O Monstro bate à nossa porta – a ameaça global da gripe aviária, Record, Rio de Janeiro, 2005, p. 214.
6 Erri de Luca, Le samedi de la terre, https://tracts.gallimard.fr/fr/products/tracts-de-crise-n-xx-erri-de-luca
7 Sophia de Mello Breyner, Poemas Escolhidos, seleção de Vilma Arêas, Ed. Companhia das Letras, SP, 2004
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Estes textos são parte de uma série de boletins sequenciais sobre o coronavírus e Ciências Sociais que está sendo publicada ao longo das próximas semanas. Trata-se de uma ação conjunta que reúne a Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), a Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e a Associação dos Cientistas Sociais da Religião do Mercosul (ACSRM). Nos canais oficiais dessas associações estamos circulando textos curtos, que apresentam trabalhos que refletiram sobre epidemias. Esse é um esforço para continuar dando visibilidade ao que produzimos e também de afirmar a relevância dessas ciências para o enfrentamento da crise que estamos atravessando.
A publicação deste boletim também conta com o apoio da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC/SC), da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), da Associação Nacional de Pós-Graduação em História (ANPUH), da Associação Nacional de Pós graduação e Pesquisa em Letras e Linguística (Anpoll) e da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (Anpur).
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